Capítulo2 Introdução

Uma das principais preocupações durante as eleições gerais de 2022 no Brasil era a disseminação de desinformação, conhecida popularmente como “fake news”. A utilização de redes sociais e aplicativos de mensagens para promover desinformação por eleitores e candidatos representava um importante ponto de potencial controle sobre a desinformação. Foi comum observar o Tribunal Superior Eleitoral determinando que plataformas removessem conteúdos contendo “fake news” eleitorais1. No entanto, essa situação se assemelhava a um jogo de “gato e rato”, uma vez que nada impedia que os divulgadores de “fake news” criassem novas postagens, perpetuando a disseminação de desinformação. Esse tipo de cenário político, no qual os atores precisam tomar decisões estratégicas, ou seja, planejar suas ações tentando antecipar as respostas dos outros, é exatamente o que a teoria dos jogos busca modelar e analisar.

A política é repleta de situações em que um indivíduo deve agir supondo que os demais participantes do jogo político reagirão às suas ações e até mesmo tentarão antecipar seus movimentos, fazendo suposições e conjecturas sobre os outros. Isso representa uma das maiores dificuldades para os cientistas políticos na previsão dos efeitos de reformas eleitorais, por exemplo. Apesar de ser um tema frequentemente debatido e solicitado pela sociedade, muitas propostas são elaboradas como se o mundo não fosse estratégico, ou seja, como se os agentes políticos não fossem modificar seu comportamento devido às novas regras adotadas. Considere, por exemplo, a proibição de doações privadas de empresas para campanhas eleitorais, implementada no Brasil após decisão da Suprema Corte Federal em 2016. Muitos esperavam que isso reduzisse a influência do dinheiro nas eleições. No entanto, com o tempo, políticos aprovaram um fundo eleitoral com recursos públicos, aumentaram esse fundo sucessivamente e ainda aprovaram o que ficou conhecido como “Orçamento Secreto” para também aumentar as chances nas eleições, entre outros objetivos menos legítimos. Comparando o total de valores envolvidos após a decisão do STF com os valores anteriores, mesmo considerando o caixa dois, o montante provavelmente supera o que se gastava em eleições anteriores a 2016. É evidente que medidas como o “Orçamento Secreto” poderiam ser adotadas mesmo se o financiamento por empresas continuasse permitido, mas a mera possibilidade de que todas essas medidas sejam uma reação dos políticos à decisão do STF mostra quão difícil é antecipar as consequências de mudanças nas regras do jogo e que considerações estratégicas são fundamentais para entender a política.

Portanto, a teoria dos jogos é um ramo da matemática aplicada que visa modelar situações estratégicas como essa. Um exemplo simples, mas muito esclarecedor, de como a teoria dos jogos pode elucidar essas questões é o Dilema do Prisioneiro, que apresentaremos a seguir.

2.1 Dilema do Prisioneiro

Esse é talvez o mais famoso da história da Teoria do Jogos, chamado Dilema do Prisioneiro, e que foi proposto em 1951 por Merrill Flood em 1951, e primeiramente formalizado por Albert W. Tucker.

A história é mais ou menos assim. A polícia prendeu dois suspeitos de cometer um crime. Tem evidência de um crime de pena menor, mas gostaria de condená-los por crimes com penas maiores. Se um ou ambos confessarem o crime maior, podem conseguir obter o que precisam.

Para dar concretude, imaginem que a Polícia Federal prendeu dois executivos suspeitos de corrupção e lavagem de dinheiro, a dez anos de prisão. Possuem provas suficientes para condená-los por um crime menor, como tráfico de influência (dois anos de prisão), mas gostariam de condená-los pelo crime de pena maior. A PF colocou os dois presos em celas separadas e decidiu fazer a seguinte oferta para eles:

“Nós temos evidência suficiente para condená-los, você e seu parceiro, pelo crime de tráfico de influência, que dá 2 anos de prisão para cada. Contudo, se você assinar um acordo de colaboração premiada com a gente e confessar o crime de corrupção e lavagem de dinheiro, você sairá livre e seu parceiro será condenado a dez anos de prisão. Um outro policial está na cela do seu parceiro, neste exato momento, fazendo a mesma oferta a ele. Se ele aceitar confessar o crime, e você não, então ele sairá livre e você ficará preso dez anos. Por fim, se ambos confessarem o crime, a pena de dez anos será reduzida à metade e vocês ficarão cinco anos presos. Essa proposta está por escrito, incluindo o fato de que seu parceiro está recebendo proposta igual”.

O que você faria?

Para analisar o DP, é comum construimos uma matriz de payoffs. Ela é uma tabela, que contém nas linhas e colunas as ações disponíveis para cada jogadora, e nas células temos os *payoffs”, que são as consequências ou resultados das combinações de ações de cada jogadora.

A matriz abaixo apresenta uma possibilidade para o Dilema do Prisioneiro:

Coopera Não coopera
Coopera (1,1) (20,0)
Não coopera (0,20) (10,10)

2.2 Dilema da Ação Coletiva

O Dilema do Prisioneiro é muito utilizado como base para pensar problemas de ação coletiva. A cooperação produz resultados socialmente melhores, porém a estratégia dominante individualmente é não cooperar.

A partir do conhecimento da lógica do Dilema do Prisioneiro, podemos aplicá-la para outras situações de ação coletiva.

2.3 Happy hour

Ocorrências prosaicas do dia a dia frequentemente refletem um cenário análogo ao Dilema do Prisioneiro.

É comum que colegas de trabalho ou de faculdade decidam sair para o “happy hour” após o expediente ou término de aulas. E também é comum que ao final a conta seja dividida igualmente entre os presentes. E inevitavelmente alguém irá reclamar de que bebeu ou comeu pouco e está pagando mais do que deveria. Isso pode ser pensado como um exemplo do Dilema do Prisioneiro.

2.4 Dilema da Segurança

Nas Relações Internacionais, o chamado Dilema da Segurança entre duas potência pode ser resumido da seguinte forma: ambos os países se beneficiam mais se ambos se desarmarem do que se ambos se armarem, mas cada um tem uma vantagem individual se for o único a se armar. Portanto, em equilíbrio, temos uma corrida armamentista. Mais uma vez, há similaridade com o Dilema do Prisioneiro aqui, já que a cooperação seria mutuamente benéfica, mas os países acabam em uma situação racionalmente indidivudal mas que é pior para todos.

2.5 Cuidar da casa

A limpeza de uma casa é algo que benefícia a todos os membros da casa. No entanto, limpar a casa é custoso e limpar apenas a sujeira que você causou tem pouco impacto sobre a limpeza geral da casa, especialmente quando a casa é grande. Assim, mais uma vez temos uma esturtura similar ao Dilema do Prisioneiro, em que a cooperação seria benéfica, mas o equilíbrio é a não-cooperação, já que embora todos prefiram uma casa limpa a uma suja, o equilíbrio é ninguém limpar a casa.

Implicações da Teoria dos Jogos para questões mais complexas

A dinâmica de limpeza em um lar reflete não apenas a organização doméstica, mas também revela estruturas sociais mais profundas, como o patriarcado e o racismo. Historicamente, no Brasil, o cuidado com a casa e a geração do bem comum dentro do lar foram frequentemente atribuídos às mulheres, uma manifestação direta do patriarcado. Este arranjo social impõe o ônus da manutenção do lar majoritariamente sobre elas, enquanto os homens são poupados desse trabalho.

Além disso, em contextos de classe média e alta, o racismo estrutural tem permitido que mulheres brancas transferissem a responsabilidade do trabalho doméstico para mulheres negras. Inicialmente, essa transferência ocorria por meio da escravidão e, posteriormente, através da contratação de empregadas domésticas. Essas empregadas, até muito recentemente, desempenhavam suas funções com poucos ou nenhum direito trabalhista, o que reflete não apenas uma desvalorização do trabalho doméstico, mas também a perpetuação de desigualdades raciais e de gênero.

A aprovação da PEC das Domésticas marca um ponto de inflexão nesse cenário. Ao garantir direitos trabalhistas às empregadas domésticas, a PEC aumenta os custos associados à contratação desse tipo de serviço. Esse aumento de custo desafia o equilíbrio anterior, baseado na exploração e na desigualdade. Se por um lado a PEC contribui para uma redistribuição dos custos do bem comum doméstico, favorecendo a equidade racial ao impor responsabilidades financeiras mais justas às empregadoras, por outro, não resolve completamente as questões de gênero. A menos que o equilíbrio patriarcal também seja abordado, a responsabilidade pelo trabalho doméstico continuará a recair desproporcionalmente sobre as mulheres, seja dentro do contexto familiar ou no mercado de trabalho doméstico.

Portanto, a mudança real exige uma abordagem que não apenas redistribua o custo do trabalho doméstico de maneira mais equitativa entre as raças, mas que também desafie e transforme as normas de gênero que atribuem esse trabalho principalmente às mulheres.

2.6 Resumo de notação matemática

\(\doteq\) relação de igualdade que é verdade por definição. Ex. \(\bar{x} \doteq \frac{\sum_{i=1}^n(x_i)}{n}\).

\(\approx\) aproximadamente igual.

\(\varpropto\) proporcional a.

\(P(X=x)\) Probabilidade que a variável aleatória \(X\) assuma o valor \(x\).

\(\mathbb{E}[X]\) esperança de \(X\), isto é, \(\mathbb{E}[X] \doteq \sum_x(x)p(X)\)

\(\arg\max_{x}(f(x))\) o valor de \(x\) que maximiza \(f(x)\).

\(\mathbb{R}\) o conjunto dos números reais.

\((a,b]\) o intervalo dos reais entre \(a\) e \(b\), incluindo \(b\) mas excluindo \(a\).

\(\gamma\) a menos que especificado em contrário, parâmetro de taxa de desconto intertemporal.

\(-i\) indicado para se referir a todos as outras jogadoras que não a jogadora \(i\).

\(s_i\) estratégia da jogadora \(i\).

\(s_{-i}\) estratégia de todas as outras jogadoras que não a jogadora \(i\).

2.7 Referências

Kollock, P. (1998). Social dilemmas: The anatomy of cooperation. Annual review of sociology, 183-214.

Roxborough, I. (1992). Inflação e pacto social no Brasil e no México. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 197-224.