Capítulo3 Racionalidade e Relações de Preferência

Racionalidade é um conceito obviamente muito importante em qualquer teoria social e com implicações filosóficas. Pensadores da Grécia Antiga, como Aristóteles, definiam o ser humano como um animal racional, diferentemente portanto dos demais animais. Com os modelos de Linguagem Generativa, discussões sobre Inteligência Artificial retomaram, com muita confusão e “hype” sobre o que é inteligência e o que seria inteligência articial. Para além das questões filosóficas, importa para nós principalmente que racionalidade é uma presuposição chave para nossa teoria do comportamento dos agentes. A Teoria dos Jogos envolve, fundamentalmente, em especificar como agentes tomam decisões e, portanto, comportam-se em situações estratégicas. De modo que a tomada de decisão merece ser investigada em profundidade.

3.1 Tomada de decisão

Existe um capo da ciência voltado à Teoria da Decisão, que grosso modo diz respeito a como agentes tomam decisões em situações não-estratégicas. A Teoria dos Jogos se diferencia da Teoria da Decisão, portanto, pelo compoente estratégico. Mas isso não significa que não compartilhem elementos chave sobre os pressupostos comportamentais de como agentes tomam decisões. Em uma eleição, cada eleitor tem um problema de decisão: em quem deve votar, dentre as várias alternativas (incluindo Nulo, branco e não ir votar). Similarmente, quando você vai almoçar, deve escolher qual comida irá comer. Ou pela manhã, quando for se arrumar para sair de casa, qual roupa vestir. Todos esses problemas se assemelham em um aspecto: uma pessoa (ou, como iremos chamar em Teoria dos Jogos, uma jogadora) deve escolher entre várias alternativas e cada escolha gerará um resultado, que pode ser melhor ou pior para a jogadora (e eventualmente outras jogadoras).

A tomada de decisão consiste de três elementos fundamentais: 1. Ações : as alternativas que uma jogadora pode escolher 2. Resultados: as consequências de cada ação 3. Preferênciasˆ[Na escola eu aprendi que o verbo preferir não permite o uso de advérbios para qualificação de intensidade. Seria gramaticalmente errado dizer: prefiro muito ou mais goiaba à maçã. A razão é que a preferência seria um conector binário, que indica ordem, mas não quantidade. Como veremos, essa nocão gramatical do português será útil, mas em algum momento deve ser abandonada quando entramos na seara da incerteza]: quais resultados as jogadoras preferem. E vamos designar essas preferências pela relação (binária) de preferência \(\succcurlyeq\), que significa, “pelo menos tão bom quanto”, ou seja, se escrevo \(x \succcurlyeq y\), então \(x\) é pelo menos tõ bom quanto \(y\) (e potencialmente melhor que \(y\)).

3.2 Relações

O conceito de relação (binária) na matemática está associado à presença de um tipo de vínculo específico entre elementos de um conjunto. Suponha o conjunto \(A = \{1, 2, 3\}\). A Relação \(\geq\), entendida por “maior ou igual que” expressa uma relação de comparação de magnitude entre os elementos do conjunto. Assim, podemos dizer que \(3 \geq 2\), e que \(2 \geq 2\), exemplificando como a relação “maior ou igual que” se aplica. Em geral, podemos dizer que para quaisquer pares \(x, y \in A\) podemos estabelecer a relação \(x \geq y\).

A partir desse exemplo, temos uma intuição para construir outros tipos de relações. Em particular, a relação de preferência.

Relações de preferência \(\succcurlyeq\) são tais que,se \(x \succcurlyeq y\), isso quer dizer que \(x\) é pelo menos tão bom quanto \(y\). Às vezes aparece como fracamente preferido, no jargão econômico. Se \(x \succ y\), então \(x\) é preferível a \(y\), ou \(x\) é melhor que \(y\). Por fim, quando temos \(x \sim y\), então o jogador ou jogadora é indiferente entre \(x\) e \(y\), ou \(x\) é tão bom quanto \(y\).

3.3 Mais sobre relações binárias

O conceito de relação de preferência pode ser difícil de entender a primeira vista, de forma que mais exemplos de relações binárias (como é a relação de preferência), podem ser úteis. Então, eis alguns exemplos de outros tipos de relação.

3.3.1 Relação de “inclusão”

Nós estamos familiarizados com a ideia de que, e teoria dos conjuntos, existe a ideia de inclusão, quando dizemos que “o conjunto A está incluso no conjunto B”. Isso também é uma relação binária, chamada de relação de inclusão, que compara dois conjuntos e determina se um é um subconjunto do outro. Por outro lado, uma relação binária de preferência compara duas opções e determina se uma opção é preferida estritamente, fracamente preferida, ou se há indiferença entre as opções.

3.3.2 Relação de “antecessor/sucessor”

Similarmente, podemos dizer que existe uma relação binária chamada “antecessor/sucessor”, que compara dois números e determina sua relação de sequência, como por exemplo, quando dizemos que “3 é o antecessor de 4”.

3.4 Racionalidade

O Dilema do Prisioneiro é um jogo estudado inicialmente pelos matemáticos Merrill Flood e Melvin Dresherin em 1950, como parte da investigação da Corporação Rand sobre Teoria dos Jogos, por possíveis aplicações em estratégia nuclear global. O título “dilema do prisioneiro” e a estrutura de payoffs associada à história dos prisioneiros foi criada pelo matemático Albert Tuckerˆ[Kuhn, Steven, “Prisoner’s Dilemma”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2024 Edition), Edward N. Zalta & Uri Nodelman (eds.), URL = https://plato.stanford.edu/archives/win2024/entries/prisoner-dilemma/]. Nós consideramos que os jogadores são racionais no Dilema do Prisioneiro (DP). Mas o que é ser racional? A partir da noção de relação de preferência, podemos definir racionalidade com dois axiomas:

  1. Axioma da completude. A relação de preferência \(\succcurlyeq\) é completa. Ou seja, para quaisquer dois resultados \(x, y \in X\) é possível ranqueá-los pela relação de preferência, tal que ou \(x \succcurlyeq y\) ou \(y \succcurlyeq x\) ou \(x \sim y\).

O axioma da completude me diz apenas que, se eu tiver dois resultados, sempre vou poder dizer qual prefiro (incluindo dizer que sou indiferente). Porém, não posso ficar na dúvida e não conseguir decidir qual é preferido (ou se sou indiferente). Portanto, é um axioma que requer pouco das pessoas para poder chamá-las de racionais. Porém, vale notar que alguns estudiosos têm insistindo que indiferença é diferente de indecisãoˆ[Para um exemplo que explicar a diferença entre um e outro, cf. o começo do trabalgo de Eliaz, K., & Ok, E. A. (2006). Indifference or indecisiveness? Choice-theoretic foundations of incomplete preferences. Games and economic behavior, 56(1), 61-86.]. Se um indivíduo possui preferências incompletas, isso significa que ele está indeciso sobre sua preferência em relação a duas alternativas.

O segundo axioma é um pouco mais exigente e irá garantir que podemos ranquear \(todos\) os resultados.

  1. Axioma da transitividade. A relação de preferência \(\succcurlyeq\) é transitiva. Ou seja, para quaisquer três resultados \(x, y e z \in X\), se \(x \succcurlyeq y\) e \(y \succcurlyeq z\), então \(x \succcurlyeq z\).

O axioma da completude me diz que posso ranquear quaisquer dois resultados, e o axioma da transitividade me diz que não há contradição no meu ranqueamento. Para ver porque a condição de transitividade é mais demandante, considere o seguinte exemplo. Algumas pessoas preferem estritamente café sem açúcar a café com duas colheres de açúcar. Vamos supor que duas colheres de açúcar são 100 gramas de açúcar. A maioria das pessoas é indiferente entre café com 100 gramas e café com 99 gramas, porque a diferença de sabor é imperceptível. Igualmente, é indiferente entre café com 98 gramas e café com 99 gramas. E assim por diante, de modo que é indiferente a café com duas gramas de açúcar e uma grama, e também é indiferente a café com uma grama e café sem açúcar. Porém, prefere café sem açúcar a café com duas colheres de açúcar. Logo, as preferências não são transitivas. Essse exemplo ilustra que um axioma aparentemente inócuo para definir racionalidade, em uma situaçõa simples, como a preferência entre café com e sem açucar, pode significar que na verdade tal pessoa não é racional.

A intransitividade, nesse caso, parece advir na verdade da violação do axioma da completude. Talvez as pessoas não sejam capazes de ranquear duas versoes de café com uma diferença muito pequena de açucar. Ou então, uma violação direta da intransitividade mesmo. De todo modo, são dois axiomas bastante simples em certo sentido e, no entanto, esses dois axiomas em conjunto podem vir a se revelar mais demandantes.

De todo modo, parece razoável exigir que pessoas racionais tenham preferências transitivas. A razão para isso é porque, se elas não tiverem de fato preferências transitivas, é possível explorar essa irracionalidade. Tomando o exemplo acima, suponha que um café sem açúcar seja mais caro que um café com açúcar (digamos que a loja é patrocinada por uma empresa de açúcar, de modo que ela ganha mais dinheiro se vende café com açúcar). Em tese a pessoa aceitaria fazer 100 trocas de um café pelo outro com uma diferença de uma grama, tendo pagado mais caro pelo produto que poderia ser comprado mais barato. E o ciclo começaria de novo, até a pessoa ficar completamente sem dinheiro.

Então, uma relação de preferência que é completa e transitiva, isto é, satisfaz os dois axiomas postulados por nós, é uma relação de preferência racional.

Questão em sala de aula: Será que a escolha de sofia é um exemplo de violação do axioma da completude?

Para mais críticas ao axioma da completude, ver por exemplo (no contexto da teoria da utilidade cardinal): Aumann, R. J. (1962). Utility theory without the completeness axiom. Econometrica: Journal of the Econometric Society, 445-462.

3.5 Funções de Payoff

Uma das vantagens de se assumir relação de preferência racional é que é possível adotar uma esquema matemático mais operacional do seguinte modo. Suponha que você vai vender suco de limão e tem três possíveis ações: suco de baixa-qualidade \(b\), que custa 10 e você vende a 15; suco de média-qualidade \(m\), que custa 15 e você vende a 25, e suco de alta-qualidade, \(a\), que custa 25 e você vende a 32. Exercício em sala. Escrever o conjunto de ações $ A = {b, m ,a}$, o conjunto de payoffs ou resultados, considerando o lucro, e não a receita apenas: \(X = {5, 10, 7}\). Escrever a relação de preferência: \(10 \succ 7 \succ 5\).

Assim, a melhor escolha é \(m\), que dá o maior lucro.

Uma outra forma de escolher a melhor ação seria definir uma função de lucro p(A), e ver qual a escolha de A que maximiza o lucro. Por exemplo \(P(b) = 5\), \(P(A) = 10\) e \(P(A) = 7)\).

Essa mesma lógica do lucro pode ser aplicada para qualquer decisão, mesmo que não envolva retornos monetários, contanto que a relação de preferência seja racional.

Definição 1. Uma função de payoff (ou função de utilidade) \(u: X -> R\) representa a relação de preferência \(\succcurlyeq\) para todo par \(x, y \in X\), \(u(x) >= u(y)\) se e somente se \(x \succcurlyeq y\).

O que estamos dizendo é que a função de utilidade \(u\) recebe resultados do conjunto \(X\), e retorna um número real para cada resultado. E essa função representa nossa relação de preferência racional se, sempre que a utilidade de \(x\) for maior que a utilidade de \(y\), para qualquer \(x\) e \(y\), isso implicar que \(x \succcurlyeq y\) e vice-versa.

Veja que o número real a ser atribuído não tem sigifnicado algum e pode ser qualquer valor, desde que a relação de ordem seja preservada. A função de utilidade é uma construção ordinal, porque os payoffs são ordinais. Se um resultado gerar utilidade 10 e outro utilidade 5, não podemos dizer de verdade que o primeiro é duas vezes preferido ao segundo.

3.6 Utilidade Ordinal

Não função de utilidade definida acima, a utilidade é ordinal. Uma das consequências é que podemos fazer quaisquer transformações na função utilidade que preservem a ordem de preferência. Esse tipo de transformação é chamado de transformação monotônica.


Exercícios em sala: Digamos que eu tenha uma função de utilidade \(u(x)\) qualquer. Diga se as seguintes transformações são montônicas (isto é, preservam a ordem).

  1. \(2*u(x)\)
  2. \(u(x) + 10\)
  3. \(log(u(x))\). Suponha que \(u(x) > 0\) para todo \(x\).
  4. \(u(x)^3\)
  5. \(u(x)^2\)
  6. \(u(x) - 10\)

Formalmente, uma transformação da função utilidade por outra função \(f\) é monotônica se \(f(u)\) for uma função estritamente crescente de \(u\). Lembrando que uma função \(f(x)\) é estritamente crescente se ela cresce à medida que x cresce. Ou seja, \(u_1 > u_2\) \(\implies\) \(f(u_1) > f(u_2)\).

3.7 Exercícios

Exercise 3.1 Digamos que Serena prefira sushi a pizza e pizza a hambúrguer. Escreva a relação de preferências de Serena descrita acima, usando o símbolo de relação de preferências \(\succ\).

Exercise 3.2 Digamos que Serena prefira hambúrguer a sushi. Escreva a relação de preferências de Serena e diga qual axioma ela violou.

Exercise 3.3 Explique, com suas próprias palavras, o que é o axioma da completude.

Exercise 3.4 Considere a relação binária “ser melhor que ou igual a” em um jogo de futebol. Essa relação satisfaz o axioma da transitividade? Justifique sua resposta. E se “ser melhor que ou igual” no futebol for definido apenas pelo número de pontos obtidos pelas equipes em um campeonato. Essa relação satisfaz o axioma da transitividade?

Exercise 3.5 Considere a relação binária “ser mais caro do que” em um mercado de produtos. Essa relação satisfaz o axioma da completude? Justifique sua resposta.

Exercise 3.6 Na questão anterior, se você respondeu negativamente, como você modificaria a relação para que ela satisfizesse o axioma da completude.

Exercise 3.7 Considere a relação binária “ser paralelo a” em um plano euclidiano. Essa relação satisfaz o axioma da transitividade? Dica: pense em retas paralelas.

Exercise 3.8 No poema Quadrilha, de Carlos Drumond de Andrade, podemos imaginar que temos uma relação binária “amar”. Desconsiderando por um momento J. Pinto Fernandez, você diria que com as informações disponíveis no poema podemos rankear todos os demais personagens na relação “amar”? E se incluírmos J. Pinto Fernandez, sua resposta muda? Justifique sua resposta.

Exercise 3.9 Crie uma relação binária diferente das apresentadas em sala de aula e nos exercícios acima, que satisfaça o axiomada da completude e transitividade.

Exercise 3.10 Considere a relação binária “\(>=\)”. Para mostrar que essa relação implica a relação “\(>\)”, basta mostrar o seguinte. Sejam \(x\) e \(y\) dois números pertencentes ao conjunto X. Então, dizemos que \(x > y\) se e somente se \(x \geq y\) e não \(y \geq x\). Às vezes é difícil entender o que queremos dizer por não \(y \geq x\). Mas é só uma forma de negar uma relação. Então, por exemplo, se \(x=3\) e \(y=2\). Só é verdade que \(3>2\) se também é verdade que \(3 \geq 2\) e também é verdade que \(2\) não é maior ou igual a \(3\). De maneira similar, mostre que é possível derivar a relação “\(\sim\)” da relação “\(\succcurlyeq\)

Exercise 3.11 Considere o seguinte exemplo: o agente A prefere estritamente café com 7 gramas de açúcar a café sem açúcar, mas é indiferente entre café com 7 gramas de açúcar e café com 6,9 gramas de açúcar, entre café com 6,9 gramas de açúcar e café com 6,8 gramas de açúcar, e assim por diante, até ser indiferente entre café com 0,1 gramas de açúcar e café sem açúcar. O agente A é racional no sentido da Teoria dos Jogos? Justifique sua resposta.

Exercise 3.12 Suponha que uma pessoa A prefira a cor vermelha à cor verde e prefira a cor verde à cor azul. No entanto, quando confrontada com um tom específico de verde-azulado, A pode ser indiferente entre esse tom e a cor verde. Isso pode levar a uma violação da transitividade, pois A prefere vermelho a verde e verde a azul, mas é indiferente entre verde-azulado e verde. Forneça um outro exemplo, similar a esse, utilizando outro sentido que não a visão.